A violência sexual afeta crianças, adolescentes e adultos de diversas idades, classes sociais, raças, etnias e orientações sexuais, constituindo-se, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das principais formas de violação aos direitos humanos, considerada como “crime brutal”, que atinge o direito à vida, à saúde e integridade física das pessoas que passam por uma situação de violência.
Um dos grandes desafios para enfrentar essa violência é a articulação e integração dos serviços de atendimento a quem sofre esse tipo de violação, de forma a evitar a revitimização destas pessoas e oferecer a elas um atendimento humanizado e integral, diz a assistente social e preceptora multiprofissional do Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, do Instituto Santos Dumont (ISD), Alexandra Lima. O assunto foi levantado por ela na dissertação de mestrado profissional em Ensino da Saúde que defendeu – e teve aprovada – nesta quarta-feira (23).
Questão de saúde e segurança pública, a violência sexual é uma temática desafiadora em diversos aspectos, desde o atendimento às vítimas à proteção e prevenção de novos casos, observa Alexandra. Tendo o atendimento humanizado às vítimas como forma de responder à questão, ela desenvolveu como dissertação um Manual de Competências Comuns para a prática interprofissional no cuidado às pessoas em situação de violência. O objetivo é fazer com que pessoas em situação de violência sexual sejam acolhidas com urgência, empatia e cuidados interprofissionais.
O material desenvolvido por Alexandra Lima como produto de sua dissertação orienta profissionais que atuam lidando com sequelas deixadas pela violência, sobretudo a sexual. Para ela, é essencial acolher a vítima com competências que transcendem a formação essencialmente técnica.
“Quando uma vítima de violência sexual chega em um serviço de atendimento, ela passa, no mínimo, por vigilante, recepcionista, enfermeira, assistente social. É necessário que todas essas pessoas entendam que o atendimento a essa vítima é urgente e precisa ser tratado com empatia, evitando que a pessoa revisite o trauma que já vivenciou”, explica Alexandra.
No Manual de Competências para a prática interprofissional do cuidado às pessoas em situação de violência sexual são elencadas 15 competências que ela sugere que os profissionais que atendem as vítimas sigam, divididas entre habilidade, conhecimento e atitude.
O trabalho foi desenvolvido através da junção de perspectivas apresentadas por profissionais e estudantes/residentes que atuam direta e indiretamente no cuidado ou na orientação a esse público, sobre como deve ser a conduta de todos os agentes envolvidos.
Queixas das vítimas
“Uma das principais queixas das vítimas, algo que nós observamos ser incômodo, é o ato de ter que contar a história do abuso ou violência várias vezes. Isso faz com que a vítima relembre o ocorrido que já é muito traumatizante. Muitas vezes aquela pessoa já vem percorrendo vários lugares em busca de um atendimento, de uma solução. Por isso, nós precisamos prestar um serviço mais qualificado, diretivo e resolutivo, onde, da portaria ao consultório todos tenham o mesmo conhecimento, as mesmas habilidades e as mesmas atitudes”, relata a assistente social e preceptora multiprofissional do Anita/ISD.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde em maio deste ano, 86% dos registros de violações reportados pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019 no Brasil são de violações contra crianças ou adolescentes. Além disso, em 11% das denúncias referidas a este grupo figura violência sexual. O percentual corresponde a 17 mil ocorrências.
O levantamento permitiu identificar que a violência sexual acontece, em 73%¨dos casos, na casa do própria vítima ou suspeito e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.
De acordo com o levantamento Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no período acumulado entre março e maio de 2020, houve uma redução de 50,5% nos registros de estupro e estupro de vulnerável no Brasil com vítimas mulheres em relação ao mesmo período de 2019. As maiores reduções foram registradas nos estados do Espírito Santo (79,8%), Ceará (64,1%) e Rio de Janeiro (61,2%).
Já o Rio Grande do Norte vai contra a corrente de diminuição dos casos em todo o país. Potiguares vivem em um cenário de crescimento nos casos de violência sexual, são 62,2% casos de estupro e estupro de vulnerável a mais em 2020, em comparação ao mesmo período de 2019. O percentual corresponde a 31 ocorrências a mais em 2020, somando 81 casos de março a maio, contra 50 no mesmo período de 2019.
DE OLHO NO CUIDADO
No manual de competências para a prática interprofissional do cuidado às pessoas em situação de violência sexual, dos 15 pontos elencados, pelo menos três são considerados imprescindíveis, segundo Alexandra Lima:
- Atuar com senso de urgência para o atendimento das situações de violência sexual;
- Evitar condutas e encaminhamentos desnecessários que possam induzir a revitimização da pessoa em situação de violência sexual;
- Conhecer a rede e o fluxo de encaminhamentos para o cuidado às pessoas em situação de violência sexual.
Realidade no atendimento
“A motivação para esse trabalho veio a partir da realidade que enxergamos no atendimento a vítimas de violência sexual. Há a necessidade de um alinhamento das ações e das informações a serem prestadas e tudo isso precisa ter, inclusive, uma linguagem simples, de fácil entendimento, para que profissionais de todos os níveis de conhecimento entendam e saibam como ajudar e acolher esse público”, explica Alexandra Lima.
O trabalho é resultado de um estudo observacional descritivo, com base na pesquisa-ação, através da realização de oficina com 76 participantes e questionário com 32 respostas, onde foram discutidos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para a atenção às pessoas em situação de violência sexual.
O produto contendo as competências e seus conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados foi representado através de infográfico. Clique apara acessar.
Dentre os atributos considerados essenciais ao desenvolvimento da maioria das competências comuns estabelecidas, os resultados apontam ainda: “entender a importância do trabalho em equipe com profissionais de várias áreas para a rede de cuidado”, “atender com agilidade e presteza às pessoas em situação de violência sexual” e “estar disponível para a prática do trabalho em equipe”.
A dissertação de mestrado foi apresentada nesta quarta-feira (23) em videoconferência aberta a profissionais de diversos níveis de conhecimento e formação que atuam em contato com vítimas de violência sexual.
De acordo com a norma técnica Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual, elaborada em 2015 pelo Ministério da Saúde, a atenção às pessoas em situação de violência sexual não deve ser isolada e seu enfrentamento depende de iniciativas intersetoriais para o atendimento, proteção, prevenção de novas situações e medidas para possibilitar a responsabilização dos autores da agressão.
No Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, do Instituto Santos Dumont (ISD), funciona o projeto Fazendo Direitos, que desde 2016 atende crianças, adolescentes, mulheres cis e trans vítimas de violência sexual. A assistente social e agora mestra em Ensino da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte é uma das preceptoras à frente do projeto. O serviço é exclusivo para o Sistema Único de Saúde (SUS) e promove ações de conscientização sobre as diferentes formas de violência, de educação em saúde e empoderamento em relação aos direitos sexuais e reprodutivos.
O Fazendo Direitos foi – junto com a pediatria e a obstetrícia de alto risco – mantido presencialmente pelo Anita/ISD, durante o período de isolamento decretado como prevenção ao novo coronavírus. O serviço continua funcionando e está disponível para o atendimento às vítimas.