Renata Moura
Jornalista
Em um post no início de maio, o perfil no Facebook anuncia: “Remédio para piolhos mata o coronavírus”.
O texto acompanha o vídeo de uma mulher, que diz “eu descobri que realmente esse medicamento mata o vírus em 48 horas”.
O rosto na gravação de pouco mais de seis minutos está parcialmente coberto. A mulher usa máscara, segura a caixa do medicamento e fala em direção à câmera de um celular.
Uma das bases da argumentação é que pegou “esse coronavírus, esse Covid-19” e – supostamente – foi curada.
Ela também diz que o medicamento foi testado na Alemanha. Se refere, na verdade, a um estudo divulgado no início de abril, na Austrália, cujos resultados indicam que a Ivermectina – substância usada no tratamento de piolho – inibe a multiplicação do SARS-CoV-2 (o novo coronavírus), causador da doença Covid-19.
Com testes realizados apenas in vitro – ou seja, com células cultivadas e infectadas em laboratório – os próprios pesquisadores observam que possíveis benefícios em humanos ainda precisam ser investigados.
Diversas reportagens veiculadas à época e o vídeo de um médico compartilhado no mesmo perfil de Facebook fazem a ressalva. O médico que aborda o assunto tem mais de 4 milhões de inscritos no YouTube e alerta: “não é para comprar o remédio para tomar, até porque não se sabe como vai se comportar no organismo”. A mulher na gravação de pouco mais de seis minutos, por outro lado, não faz qualquer ponderação. Pelo contrário. Ela incentiva o consumo.
“Galera, você que é pobre (…), você que está com medo de sair pra trabalhar (…) se você estiver com medo e souber que existe uma cura de R$ 10 que está ao alcance de todo mundo acabou o problema”, diz ela, se apresentando como prova viva de que a droga funciona e afirmando que a geração da mãe, das tias e da avó não tomou a substância para matar piolho “e obviamente elas são mais propensas ao vírus”. Dezenas de usuários da rede compartilharam a história. A origem e a identidade da autora do vídeo não são reveladas.
O caso apresenta como verdade uma “cura” rotulada como “fake” pelo Ministério da Saúde. É um em meio à enxurrada que se alastra nas redes sociais espalhando desinformação associada à Covid-19.
O movimento ganha força em um contexto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de enorme Infodemia, uma avalanche de informações sobre a doença que criou terreno fértil para confundir ou enganar pessoas não só no Brasil, mas no mundo.
Clique aqui ou na seta abaixo da imagem para ver dados a respeito e saber como se proteger dessa onda:
Fake, desinformação e um monte de perigo
Em meio à avalanche de informações sobre o coronavírus e a Covid-19 especialistas chegam a se referir ao avanço da desinformação, ou seja, da disseminação de informações falsas ou imprecisas cuja intenção deliberada é enganar, como uma “epidemia”.
O cenário “torna mais difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa”, explica a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS).
Nesse terreno, rumores, informações falsas (Fake News), desinformação e manipulação de informações com intenção duvidosa sobre o novo coronavírus e a Covid-19 se multiplicam nas redes, com riscos enormes.
“A Desinformação da Covid-19 cria confusão sobre as ciências médicas com impacto imediato na população, e de um jeito mais tóxico e mortal do que qualquer outra”, afirma a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que chama o fenômeno de “Desinfodemia”, em alusão à desinformação que promove e à gravidade das consequências a que pode levar.
“No contexto da pandemia atual, (a desinformação) pode afetar profundamente todos os aspectos da vida e, mais especificamente, a saúde mental das pessoas, pois a busca por atualizações sobre a Covid-19 na Internet cresceu de 50% a 70% em todas as gerações”, complementa a OPAS, apontando também riscos à saúde física e possíveis comportamentos de risco motivados pela difusão desse tipo de informação.
“Agravando a pandemia”
Induzir pessoas com ou sem sintomas a tentar medicamentos não comprovados ou a ingerir substâncias que ameaçam a saúde, na esperança de prevenção ou cura, está entre os efeitos possíveis dessa onda.
Nessa corrida por soluções, tratamentos essenciais podem acabar ignorados ou substituídos por opções sem fundamento, assim como podem emergir outros perigos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, pessoas ingeriram desinfetante e sofreram intoxicação após o presidente Donald Trump sugerir que cientistas pesquisassem a injeção do produto no corpo como tratamento para o novo coronavírus.
Em entrevista à CNN em que é questionado sobre as palavras do presidente, Dr. Stephen Hahn, comissário da Food and Drug Administration (FDA) – agência do Departamento de Saúde do governo – recomenda que as pessoas não injetem ou comam o produto.
Alertas
Essa e várias outras possíveis consequências da disseminação de informações imprecisas ou intencionalmente falsas, que podem levar a interpretações erradas sobre a doença ou a outros problemas, têm preocupado cada vez mais autoridades e especialistas nas áreas de saúde, comunicação e segurança pública.
No documento “Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a Covid-19” – um dos vários que alertam para os riscos – a OPAS reforça que a desinformação pode agravar a pandemia porque “dificulta que fontes idôneas e orientações confiáveis sejam encontradas pelas pessoas de modo geral, pelos responsáveis pela tomada de decisões e por profissionais de saúde quando precisam, bem como porque pode deixar as pessoas ansiosas, deprimidas, sobrecarregadas, emocionalmente exaustas e incapazes de atender a demandas importantes, além de afetar os processos de tomada de decisões”.
Induzir pessoas a não adotarem medidas de prevenção cientificamente atestadas, atiçar a polarização e outros ódios; encorajar atos de violência; provocar pânico e tumulto e até levar à morte também estão no rol de possíveis efeitos – muitos com exemplos para contar história.
Ministério da Saúde desmente receitas e “remédios” de internet
Tomar remédio de piolho, café, água de 15 em 15 minutos, chá de limão com bicarbonato, chá de abacate com hortelã, uísque e mel ou Vitamina D.
A relação de supostas soluções milagrosas para prevenir ou tratar a Covid-19 é enorme.
Na página “Saúde sem Fake News”, do Ministério da Saúde, várias delas aparecem e “Remédio de piolho pode matar coronavírus – É FAKE NEWS!” estava até a manhã desta quinta-feira (14) como a quinta da lista. A reportagem do Instituto Santos Dumont (ISD) questionou o Ministério sobre as afirmações contidas no vídeo encontrado no Facebook.
“Até o momento, não há nenhum medicamento, substância, vitamina, alimento específico ou vacina que possa prevenir a infecção pelo coronavírus ou ser utilizado com 100% de eficácia no tratamento”, respondeu, em nota semelhante à publicada no site.
Um informe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE), vinculada ao órgão com a missão de promover a ciência e tecnologia e o uso de evidências científicas para a tomada de decisão do Sistema Único de Saúde (SUS), diz em 15 de abril que o mecanismo de ação dessa substância sobre o novo coronavírus ainda não foi elucidado e que estudos in vitro com resultados promissores nem sempre são seguros e eficazes na fase clínica, ou seja, quando testados em humanos.
O departamento responsável pela análise afirma que não é possível, neste momento, recomendar o uso em pacientes com Covid-19. Em um outro informe, divulgado na quarta-feira (13), a Secretaria publica trecho de um artigo de opinião em que os autores descrevem “o que aprendemos” sobre diversos fármacos que vêm sendo avaliados como potenciais tratamentos – entre eles a substância usada contra piolhos – e alertam: “até o presente, nenhum dos medicamentos comercialmente disponíveis se mostrou realmente eficaz contra a Covid-19”. Segundo os autores, “vários ensaios clínicos que investigam novas terapias ainda estão em andamento e a prevenção, o controle, a comunicação ativa e mais investimento em pesquisas são as únicas maneiras de superar esse desafio”.
O Observatório do governo federal para tecnologias relacionadas à Covid-19 observa no site que “a revelação de que o fármaco Ivermectina tem efeito inibitório in vitro sobre a replicação do SARS-CoV-2, em 03 de abril de 2020, gerou repercussão e expectativa no meio acadêmico e entre o público em geral”. Mas pondera que “duas cartas ao Editor da revista Antiviral Research e a resposta dos autores do artigo, além da carta do FDA aos usuários, alertam para as limitações da extrapolação simples de estudos in vitro para a aplicação terapêutica”.
Pesquisas
Informações contidas no site ClinicalTrials.gov, mantido pela National Library of Medicine e o National Institutes of Health, a agência de pesquisas médicas do governo americano, apontam que Estados Unidos, Egito, Argentina, Índia e Iraque estão entre os países que se preparam para testar o uso da substância em voluntários humanos.
“Há vários estudos. Alguns já recrutando voluntários, mas é importante observar que isso não significa que as substâncias estão aprovadas para uso. Elas estão em fase de pesquisa clínica (humanos) e dependem do resultado para aí sim, concluírem se tem ou não efeito como tratamento da doença”, observa o coordenador de pesquisas do Instituto Santos Dumont, Edgard Morya. Ele encabeça o projeto “ISD contra a Covid-19”, por meio do qual alunos do mestrado em neuroengenharia usam fontes oficiais e artigos científicos para responder, nas redes sociais, as principais questões relacionadas à pandemia.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é responsável no Brasil por aprovar medicamentos ou novas indicações terapêuticas para medicamentos que já estão no mercado, também foi procurada pela reportagem para comentar o assunto, mas não respondeu, até a publicação deste texto.
Em um vídeo postado nesta semana para explicar as ações desenvolvidas para garantir o acesso da população a medicamentos seguros no contexto de pandemia, o gerente geral de Medicamentos da Agência, Gustavo Mendes, diz que mesmo medicamentos já conhecidos, que estão registrados há muito tempo, precisam apresentar novas garantias antes de terem um possível “indicado contra a Covid-19” incluído na bula. (Assista abaixo).
Perguntas
“Algumas perguntas”, segundo ele, “precisam ser respondidas antes da aprovação, justamente porque as condições de metabolismo, as condições de hospitalização, a fragilidade do paciente que está acometido pela Covid-19 necessitam de um olhar específico para avaliar se essa medicação vai ser segura e eficaz”.
“Uma das perguntas principais que a gente tem nesse caso é: qual é a dose para o tratamento da Covid? porque eu sei que para uma outra indicação ele (medicamento) tem uma dose já definida em bula, mas e para Covid será que é a mesma dose ou será que precisa ajustar essa dose? é uma dose maior? é uma dose menor? essa é a primeira pergunta que a gente faz. Definido isso, o que a gente precisa saber é: realmente vai funcionar nos pacientes?”, diz ele e complementa: “A gente sabe que o paciente da Covid tem uma série de especificidades, uma série de condições e alterações fisiopatológicas, alterações da própria doença, que causam condições de saúde específicas. E aí não adianta nada eu saber que in vitro, em células, a molécula funciona se eu não sei em humano – e aí quando falo em humano eu falo de um estudo estatístico robusto – ou seja, precisa ter um número de voluntários testados suficientes para a gente poder tomar uma decisão”.
“Será que é verdade”?
No vídeo de pouco mais de seis minutos identificado pela reportagem no Facebook e compartilhado por pelo menos dezenas de usuários na rede, a mulher diz que a caixa de comprimidos contra piolhos, que exibe, “é uma cura ao alcance de todos” e que “nunca viu ninguém morrer por tomá-lo”.
A mulher que aparece na gravação não é a mesma que postou no próprio perfil. Nos comentários, amigos são marcados ou tiram dúvidas: “o remédio é de quantos gramas?” e “será que é verdade?”. Ao que quem lê responde: “(É de) piolho, não faz mal”.
A história, porém, não é assim. Além de não ter eficácia comprovada para tratar Covid-19 em humanos, o uso do produto sem orientação médica é contraindicado – na própria bula – para mulheres grávidas ou que estejam amamentando e para crianças com menos de 5 anos de idade. Os fabricantes também alertam que ele “deve ser administrado com cautela a pacientes em uso de medicamentos que deprimem o Sistema Nervoso Central, como medicamentos para o tratamento de insônia, ansiedade, alguns analgésicos ou mesmo bebidas alcoólicas”. Informam, ainda, que diminuição da pressão arterial (principalmente quando associada ao levantar-se) e piora da asma brônquica foram relatadas desde o início da comercialização da droga, em vários países”.
Em humanos, o remédio é indicado para o tratamento de várias condições causadas por vermes ou parasitas. Além de piolho, entram no rol, por exemplo, sarna, lombriga e oncocercose, uma doença que causa lesões na pele e nos olhos e pode levar à cegueira.
Ele também é um produto veterinário e vinha sendo indevidamente usado no Brasil em vacas em lactação, segundo estudo da Anvisa publicado em outubro de 2018. Resíduos do antiparasitário foram encontrados na época em amostras de leite de caixa e de leite em pó. A Agência expressa neste documento e reforça no ano seguinte que o produto não deve ser utilizado em animais produtores de leite para consumo humano.
Na Austrália, onde a pesquisa in vitro mostrou a substância como promissora no combate à Covid-19, a ministra da Saúde, Jenny Mikakos, pediu que a população não se auto-medique ou faça uso indevido do medicamento.
“Não há razão para comprar tratamento anti-piolhos, a menos que você vá utilizá-lo nos cabelos dos seus filhos”, disse ela à ABC News durante entrevista sobre a pandemia.
“Eu estou enfatizando isso porque soubemos de casos de pessoas no exterior que ouviram sobre possíveis avanços (em pesquisas) e depois ingeriram drogas de maneira completamente inadequada e acabaram morrendo”. Ela também chamou a atenção para riscos de uma possível corrida às farmácias – como foi verificado no Brasil e em outros países motivadas por essa ou outras substâncias em estudo. “Não quero ver o povo correndo para as farmácias ou supermercados comprando medicamentos contra piolhos agora porque os cientistas estão fazendo essa pesquisa”.
7 em cada 10 internautas no Brasil já caíram em histórias falsas, diz pesquisa
Uma pesquisa da rede para mobilização social global Avaaz, publicada este mês, mostra que 110 milhões de brasileiros, ou “7 em cada 10 internautas já acreditaram em ao menos uma Fake News sobre a Covid-19”.
“Os riscos são enormes. O que acontece é que quando você recebe no seu aplicativo, na sua rede social, uma informação equivocada, uma informação falsa, você pode tomar atitudes que prejudiquem a sua própria saúde e, nesse caso, que prejudiquem a saúde da coletividade”, disse a coordenadora de campanhas da Avaaz, Laura Moraes, em entrevista à rádio CBN.
“Potência negativa”
“Muitas vezes a gente compartilha achando que está alertando, ajudando alguém, mas na verdade está encorajando alguém a tomar uma atitude que pode adoecer uma pessoa e eventualmente (levar) até a morrer”, acrescentou ela, sobre o que chamou de “potência negativa da infodemia”.
A pesquisa identificou que os brasileiros acreditam mais em informações falsas do que americanos e italianos. E destacou que a história fake que mais viram – e em que a maioria caiu, achando ser verdadeira ou parcialmente verdadeira – foi que o novo coronavírus foi criado em um laboratório secreto na China (Veja resposta sobre o tema na arte abaixo, produzida a partir de um levantamento dos alunos do mestrado em neuroengenharia do ISD para a série ISD contra a Covid-19).
No ranking das principais informações equivocadas em que os brasileiros acreditaram também figuram que “tomar grandes doses de vitamina C pode retardar ou até impedir a infecção do novo coronavírus” e que “especialistas em saúde recomendam beber água regularmente pois isso levará o novo coronavírus para seu estômago, onde a acidez irá matá-lo”.
Investigação
No estado de Minas Gerais, um boato extrapolou o âmbito das receitas milagrosas ou de teorias da conspiração sobre a origem do vírus – e está sendo investigado pela Polícia.
Em um vídeo compartilhado nas redes sociais, uma mulher relata que caixões estavam sendo enterrados com pedras no lugar de supostas vítimas da Covid-19, na capital, Belo Horizonte.
“O início das investigações apontam para o fato de produção de “fake news”, com a responsabilização da autora por eventual crime de denunciação caluniosa, difamação contra autoridade pública municipal e também a contravenção penal de produzir pânico e tumulto”, disse no dia 5 de maio, em comunicado, o chefe do 1º Departamento de Polícia Civil na cidade, Delegado-Geral Wagner Sales.
Punição
Um projeto de lei protocolado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro prevê multa e divulgação do nome completo de quem for condenado por publicar informações como essas. O autor sugere a inclusão do nome em uma lista pública chamada “Rio contra as Fake News”, para que “com nome exposto à vista de todos, os geradores de notícias falsas que, em diversos casos, prejudicam vidas e a transparência das notícias, sintam-se inibidos a reincidir”.
No Rio Grande do Norte, um decreto do governo do estado prevê multa de R$ 5 mil a R$ 25 mil e até prisão de quem espalhar conteúdos falsos relacionados a epidemias, endemias ou pandemias, como a atual da Covid-19. Estados como Paraíba, Ceará e Acre adotaram medidas na mesma linha.
Batalha
A batalha para combater a desinformação se dá ao mesmo tempo em que o Brasil registra mais de 200 mil casos confirmados da doença e quase 14 mil mortos.
Sobre possíveis tratamentos, Gustavo Mendes, gerente geral de Medicamentos da Anvisa, reitera que “existem sim drogas promissoras e possibilidade de vacina”, mas que é preciso esperar. Para chegar aos hospitais ou às prateleiras do mercado, eles requerem estudos.
“Não dá para colocar o carro na frente dos bois sem a gente ter certeza de que cientificamente é possível liberar essa medicação para tratamento. Porque a gente não quer falsas esperanças. A gente quer que sejam efetivamente terapias que funcionam”.
Texto: Renata Moura – Jornalista / Assessora de Comunicação do ISD
Assessoria de Comunicação
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(84) 99416-1880
Instituto Santos Dumont (ISD)
Organização Social do governo federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Sua missão é promover educação para a vida, formando cidadãos por meio de ações integradas de ensino, pesquisa e extensão e contribuir para a transformação mais justa e humana da realidade social brasileira.