Preparando filhos para o mundo e o mundo para os filhos: pesquisa analisa realidade de mães de crianças com TEA no RN

Publicado em 7 de agosto de 2023

Todas as manhãs, Leilane Azevedo, de 30 anos, acorda, faz o café da manhã da filha Maria Ísis, de 8 anos, e se prepara para pegar os dois transportes públicos necessários para ir de sua casa, localizada no distrito de Mangabeiras, na zona rural de Macaíba (RN), até a escola. Todas as atividades do dia que não envolvem Maria Ísis precisam ser feitas rapidamente, no período no qual a criança está em sala de aula. O tempo parece não ser suficiente: antes de resolver sequer a metade das tarefas do dia, chega a hora de buscar a filha na escola para acompanhá-la nas consultas e terapias diárias.

De acordo com um estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade Estadual Paulista (UNESP), 85% dos cuidadores principais das crianças com transtorno do neurodesenvolvimento são do gênero feminino, sendo 80% mães as principais responsáveis pelos cuidados e manutenção da vida dos mesmos. Leilane é uma dessas cuidadoras. Sua filha, Maria Ísis, possui diagnóstico para o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). 

“Eu vivo pra Ísis. A questão é muito isso mesmo. Sempre tenho que estar de olho nela: ela não vai ao banheiro sozinha, hoje em dia ela come sozinha, mas precisa de supervisão porque se engasga fácil. Ela precisa de ajuda em tudo, mas não tem quem ofereça essa ajuda. Quando vou ao médico, é de manhã, enquanto ela tá na escola, mas volto ‘às carreiras’ para dar tempo de buscá-la. Se a gente vai arrumar o cabelo ou a sobrancelha, se sente culpada, quer voltar correndo. A gente sempre vai ‘se deixando de lado’: depois eu vou, depois eu faço…”, relata Leilane Azevedo. 

O cansaço é amplificado pela falta de amparo estrutural enfrentado por mãe e filha no cotidiano. Diariamente, além de ter que “criar a filha para o mundo”, Leilane se vê na posição de ter que “preparar o mundo para a filha”, assumindo um papel de educadora diante de atitudes que buscam barrar ou dificultar a presença de Maria Ísis nos espaços. 

 

Rede de apoio ainda é frágil, apontam pesquisadoras 

 

 

As atribulações e nuances envolvendo a figura materna e feminina são marcantes em cotidianos como o de Leilane. Seu depoimento é ecoado por muitas das cuidadoras de crianças com deficiência. É o que reforça a pesquisa no pós-doutorado de Teresa Cristina de Moraes, intitulada “Gênero e autismo: narrativas maternas na trajetória do cuidado”, conduzida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no  Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Anita), uma das unidades do Instituto Santos Dumont (ISD) em Macaíba.

A pesquisadora, que possui graduação em Psicologia, analisou histórias e vivência de cuidadoras de crianças com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) atendidas pelo ISD, para compreender os desafios encontrados no cotidiano dessas pessoas.

“São as mães, as mulheres, que cuidam nesse país. Na minha pesquisa, o que eu constatei foi que elas têm muito pouco recurso, muito pouco apoio social. Quase não existe rede de apoio. São recorrentes os estudos que têm mostrado que mães de crianças com deficiência sofrem de mais estresse, depressão, vários tipos de patologia, sobretudo mentais. Esses números são, inclusive, muito maiores que a média da população com crianças sem deficiência, então é urgente agir nesse sentido”, afirma Teresa. 

Para a pesquisadora, o principal ponto que possibilita o chamado “salto de qualidade” na assistência e cuidado à saúde desse público está na ampliação da rede de proteção e apoio. Levar a discussão para educadores, profissionais da saúde e, principalmente, para agentes responsáveis pela construção de políticas públicas efetivas são alguns dos caminhos apontados pela pesquisadora para que mães como Leilane possam contar com uma estrutura que as acolha e atenda às necessidades e direitos básicos previstos não apenas para seus filhos, mas para si mesmas.  

“Um exemplo do desamparo que encontramos é que a maior renda constatada na nossa amostra de pesquisa foi de 2 salários mínimos para uma única pessoa. Ou seja, além de não contar com uma rede de apoio, do ponto de vista socioeconômico, essas mulheres são muito vulneráveis. Se você tem políticas públicas ou condições socioeconômicas você acaba sendo compensado de um lado ou de outro. Essas mães não têm nenhum dos dois”, pontua a pesquisadora. 

Alguns dos principais pontos destacados pela investigação etnográfica incluem  a  sobrecarga no cuidado e as incertezas que perpassam a vida das cuidadoras. Teresa Moraes reforça a importância de socializar a discussão sobre o tema e viabilizar estratégias de enfrentamento dessas questões não apenas dentro do núcleo familiar,  mas colocando-as como responsabilidade do Estado.

 

SOBRE O ISD 

O Instituto Santos Dumont é uma Organização Social vinculada ao Ministério da Educação (MEC) e engloba o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra e o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, ambos em Macaíba. A missão do ISD é promover educação para a vida, formando cidadãos por meio de ações integradas de ensino, pesquisa e extensão, além de contribuir para a transformação mais justa e humana da realidade social brasileira.

 

Assessoria de Comunicação
comunicacao@isd.org.br
(84) 99416-1880

Compartilhe esta notícia

Recomendados

Mais Notícias

Preparando filhos para o mundo e o mundo para os filhos: pesquisa analisa realidade de mães de crianças com TEA no RN

Todas as manhãs, Leilane Azevedo, de 30 anos, acorda, faz o café da manhã da filha Maria Ísis, de 8 anos, e se prepara para pegar os dois transportes públicos necessários para ir de sua casa, localizada no distrito de Mangabeiras, na zona rural de Macaíba (RN), até a escola. Todas as atividades do dia que não envolvem Maria Ísis precisam ser feitas rapidamente, no período no qual a criança está em sala de aula. O tempo parece não ser suficiente: antes de resolver sequer a metade das tarefas do dia, chega a hora de buscar a filha na escola para acompanhá-la nas consultas e terapias diárias.

De acordo com um estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade Estadual Paulista (UNESP), 85% dos cuidadores principais das crianças com transtorno do neurodesenvolvimento são do gênero feminino, sendo 80% mães as principais responsáveis pelos cuidados e manutenção da vida dos mesmos. Leilane é uma dessas cuidadoras. Sua filha, Maria Ísis, possui diagnóstico para o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). 

“Eu vivo pra Ísis. A questão é muito isso mesmo. Sempre tenho que estar de olho nela: ela não vai ao banheiro sozinha, hoje em dia ela come sozinha, mas precisa de supervisão porque se engasga fácil. Ela precisa de ajuda em tudo, mas não tem quem ofereça essa ajuda. Quando vou ao médico, é de manhã, enquanto ela tá na escola, mas volto ‘às carreiras’ para dar tempo de buscá-la. Se a gente vai arrumar o cabelo ou a sobrancelha, se sente culpada, quer voltar correndo. A gente sempre vai ‘se deixando de lado’: depois eu vou, depois eu faço…”, relata Leilane Azevedo. 

O cansaço é amplificado pela falta de amparo estrutural enfrentado por mãe e filha no cotidiano. Diariamente, além de ter que “criar a filha para o mundo”, Leilane se vê na posição de ter que “preparar o mundo para a filha”, assumindo um papel de educadora diante de atitudes que buscam barrar ou dificultar a presença de Maria Ísis nos espaços. 

 

Rede de apoio ainda é frágil, apontam pesquisadoras 

 

 

As atribulações e nuances envolvendo a figura materna e feminina são marcantes em cotidianos como o de Leilane. Seu depoimento é ecoado por muitas das cuidadoras de crianças com deficiência. É o que reforça a pesquisa no pós-doutorado de Teresa Cristina de Moraes, intitulada “Gênero e autismo: narrativas maternas na trajetória do cuidado”, conduzida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no  Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Anita), uma das unidades do Instituto Santos Dumont (ISD) em Macaíba.

A pesquisadora, que possui graduação em Psicologia, analisou histórias e vivência de cuidadoras de crianças com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) atendidas pelo ISD, para compreender os desafios encontrados no cotidiano dessas pessoas.

“São as mães, as mulheres, que cuidam nesse país. Na minha pesquisa, o que eu constatei foi que elas têm muito pouco recurso, muito pouco apoio social. Quase não existe rede de apoio. São recorrentes os estudos que têm mostrado que mães de crianças com deficiência sofrem de mais estresse, depressão, vários tipos de patologia, sobretudo mentais. Esses números são, inclusive, muito maiores que a média da população com crianças sem deficiência, então é urgente agir nesse sentido”, afirma Teresa. 

Para a pesquisadora, o principal ponto que possibilita o chamado “salto de qualidade” na assistência e cuidado à saúde desse público está na ampliação da rede de proteção e apoio. Levar a discussão para educadores, profissionais da saúde e, principalmente, para agentes responsáveis pela construção de políticas públicas efetivas são alguns dos caminhos apontados pela pesquisadora para que mães como Leilane possam contar com uma estrutura que as acolha e atenda às necessidades e direitos básicos previstos não apenas para seus filhos, mas para si mesmas.  

“Um exemplo do desamparo que encontramos é que a maior renda constatada na nossa amostra de pesquisa foi de 2 salários mínimos para uma única pessoa. Ou seja, além de não contar com uma rede de apoio, do ponto de vista socioeconômico, essas mulheres são muito vulneráveis. Se você tem políticas públicas ou condições socioeconômicas você acaba sendo compensado de um lado ou de outro. Essas mães não têm nenhum dos dois”, pontua a pesquisadora. 

Alguns dos principais pontos destacados pela investigação etnográfica incluem  a  sobrecarga no cuidado e as incertezas que perpassam a vida das cuidadoras. Teresa Moraes reforça a importância de socializar a discussão sobre o tema e viabilizar estratégias de enfrentamento dessas questões não apenas dentro do núcleo familiar,  mas colocando-as como responsabilidade do Estado.

 

SOBRE O ISD 

O Instituto Santos Dumont é uma Organização Social vinculada ao Ministério da Educação (MEC) e engloba o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra e o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, ambos em Macaíba. A missão do ISD é promover educação para a vida, formando cidadãos por meio de ações integradas de ensino, pesquisa e extensão, além de contribuir para a transformação mais justa e humana da realidade social brasileira.

 

Assessoria de Comunicação
comunicacao@isd.org.br
(84) 99416-1880

Compartilhe esta notícia