A maternidade traz novas responsabilidades para as mães. Em muitos casos, aumenta a carga de tarefas e limita o acesso a espaços fora do ambiente domiciliar. Não por acaso, um estudo da USP, divulgado em 2023, revelou que 11,2 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho para cuidar de crianças, de pessoas com deficiência ou para assumir tarefas domésticas.
Além disso, um estudo complementar do Datafolha, também divulgado em 2023, mostrou que 69% das mulheres brasileiras têm ao menos um filho. Destas, mais da metade é solteira, viúva ou divorciada, ocupando o lugar de mãe solo. Este cenário afeta não apenas a qualidade de vida, mas interfere diretamente na saúde física e mental das mães.
O desgaste dessas mulheres, que abdicam de si mesmas para comportarem as necessidades de um novo membro da família, não deve ser visto como um problema restrito a apenas um grupo. Por isso, reforçar e colocar em pauta e em prática o cuidado com a saúde materna faz parte de ações de responsabilidade coletiva, em prol da garantia dos direitos básicos desse público.
É o que corrobora a psicóloga Dolores Medeiros, que atua como preceptora do Instituto Santos Dumont (ISD), serviço referência na saúde materno-infantil e da pessoa com deficiência no Rio Grande do Norte. A profissional destaca a importância do acolhimento da mãe desde o momento da gestação e chama atenção especialmente para casos de gravidez de alto risco, que preconizam, muitas vezes, o nascimento de uma criança com deficiência, que demandam cuidados e sacrifícios ainda maiores.
“Existe algo ainda mais específico para a mãe de uma criança com uma condição de saúde que exige que ela seja a cuidadora. Ela pode ter ainda mais privação de sono, as mudanças dos papéis sociais às vezes são muito mais intensas. A partir do momento que a gente fala sobre alto risco, por exemplo, já vem aquele medo: ‘alto risco de quê?’. Então, trabalhar com as mães nesse contexto é ir clareando, dando lugar para as emoções”, explica a psicóloga.

Para a preceptora, existe, ainda, uma romantização e idealização excessivas sobre a maternidade, o que por si só já provoca alterações em como a mulher se vê, seja em relação a si mesma ou à família. A hipótese ou o diagnóstico da deficiência vem como um somatório neste período que já proporciona, mesmo em uma gestação sem risco, uma constante quebra de perspectivas e idealizações sobre a vida sendo gerada.
“Enquanto profissional de saúde, a gente se coloca como uma pessoa que tem um conhecimento específico, mas que vai estar em contato com outro ser humano, que chega muitas vezes com muita ansiedade e expectativas. Muito além de saber qual o resultado do exame e qual o diagnóstico, é na vinculação é que a gente consegue acessar quais histórias e sentimentos são esses que estão chegando”, reforça a profissional.
Rhavenna Ribeiro, 34, sentiu na pele como é ser uma dessas mães. Mãe de Marina, de 6 anos, pessoa com deficiência múltipla, ela precisou entender como cuidar de si mesma para conseguir enfrentar, junto à filha, as muitas barreiras que surgem no cotidiano de uma família atípica.
“Foram diversas dúvidas, uma sensação de desamparo, de falta de direcionamento, eu não conseguia ver o outro lado, chorei bastante. No mesmo dia meu esposo falou: ‘ei, ela é nossa filha, isso não muda nada para a gente’. E realmente foi e é isso! O amor nunca mudou, mas a rotina é completamente ao avesso”, relata a mãe.
A Pesquisa Nacional dos Cuidadores de Pacientes Raros aponta que, até 2022, mães representavam 81% das cuidadoras de pacientes com doenças raras. Desse percentual, 78% precisavam acompanhar o paciente 24 horas por dia e 46% tiveram de pedir demissão do emprego para serem, exclusivamente, cuidadoras.

Hoje, com uma rede de apoio composta por familiares e pelo serviço multiprofissional do ISD, Rhavenna considera que, entre as principais atribulações no processo, estão: a dificuldade de acessar espaços de saúde pública, a falta de acolhimento e de escuta e o preconceito que faz com que haja uma demora para buscar apoio. Por fim, ela menciona a sobrecarga materna: são tantas as necessidades da filha que olhar para si mesma torna-se um desafio.
“Como ela tem a escola, consigo momentos a sós para fazer atividades que dão sentido para mim além de ser mãe: trabalhar, ler um livro, fazer terapia, atividade física, cozinhar. É uma forma de cuidar de mim e estar disponível para a doação materna. Cuidar de mim para poder seguir a caminhada com ela, por mim e por ela”, considera Rhavenna.
Marina e Rhavenna são acompanhadas semanalmente por serviços especializados na saúde materno-infantil e da pessoa com deficiência oferecidos pelo ISD, no âmbito de ambulatórios multiprofissionais e do Centro Especializado em Reabilitação da instituição (CER ISD). A mãe cita a relação com os profissionais como um dos pontos principais para que a trajetória não seja tão turbulenta.
Esta relação fora dos muros clínicos é, para Dolores, uma etapa essencial do acolhimento e atendimento materno. “A equipe de saúde aparece muitas vezes como este lugar de cuidado, de reparo, de descanso, de encontrar ali, para além de cuidados médicos, pessoas que podem dar esse suporte nesse lado emocional também. Então, é realmente uma parceria que a gente vai tentando construir”, complementa a preceptora psicóloga do ISD.
Educação e conhecimento em saúde: as mães no cuidado coletivo
Existem múltiplas estratégias para o monitoramento, acolhimento e cuidado da saúde de mães no contexto da pessoa com deficiência. Exemplo disso são os grupos de educação em saúde do Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Anita), espaços livres para a troca de conhecimentos e experiências de familiares, cuidadores e pessoas atendidas pelos serviços especializados do Instituto.
Um desses grupos é o TEApoiar, voltado para mães, pais e responsáveis de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). A iniciativa é composta por uma equipe multiprofissional de preceptores e residentes, de profissões como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e serviço social, com o objetivo de estabelecer um espaço seguro e efetivo para pessoas de múltiplas realidades e demandas.
Yara Renaly, preceptora psicóloga do ISD, é uma das profissionais envolvidas neste grupo. Ela descreve o projeto como um lugar de desmistificação e empoderamento através do conhecimento. É este o espaço em que pessoas que geralmente estão tendo o primeiro contato com uma deficiência chegarão; por isso, é comum haver níveis moderados ou elevados de ansiedade e angústia entre as participantes.
“A maioria são mães de crianças em investigação diagnóstica, que não têm de fato o entendimento do que o filho delas tem, ou que já tem o diagnóstico, mas não tem para onde ir, precisa de ferramentas para conseguir colocar algo em prática. A gente tenta tratar de temas que eles escutam muito no dia-a-dia e eles acabam entendendo de forma equivocada, e aí muitos começam de fato a entender esse diagnóstico”, explica a profissional.
O TEApoiar é um grupo aberto ao público, do qual é possível participar mesmo que não esteja sendo atendido pelo serviço da linha de cuidado do autismo do ISD. Neste espaço, as participantes entendem melhor sobre os direitos da pessoa com deficiência, como usufruir de políticas públicas, como o BPC, do acesso ao transporte e à educação. “A gente sempre abre momentos para que elas consigam falar um pouquinho sobre si, o que estão buscando, quais as maiores dificuldades, para gente conseguir prestar essa assistência e até conseguir direcionar para o fluxo da atenção básica”, relata Yara.
Aline Serafim, natural de Bom Jesus/RN, participa do grupo. Ela é cuidadora integral do filho, Guilherme, que foi diagnosticado com autismo aos três anos de idade. Para ela, uma série de sentimentos esteve presente ao receber o diagnóstico: choro, incerteza, medo do preconceito e da aceitação do filho pela sociedade e em relação aos possíveis desafios que viriam com a maternidade atípica. Além do diagnóstico de TEA, também foi identificada a epilepsia focal em Guilherme.

Foi apenas com a rede de apoio, construída pelo marido, a mãe e outros familiares, além do ingresso no grupo TEApoiar, que Aline começou a se sentir tranquilizada em relação ao futuro e às potencialidades do filho.
“Foi muito bom dividir experiências, nas rodas de conversas com as profissionais e outras mães, vimos que não é só a gente que passa por isso, que outras famílias também passam. Isso nos fortaleceu ainda mais para cuidar e lutar pelo nosso filho”, relata Aline.
A psicóloga Yara Renaly reforça que a educação em saúde é um caminho inicial. “É você enxergar ali, de fato, ‘eu preciso de ajuda’, ‘eu tô num processo de ansiedade’. A gente vê que é preciso buscar alguma coisa com as ferramentas que se tem acesso. Então, a gente tenta orientar essa pessoa ali para que, no cenário que ela está, o que ela pode fazer. É um passo inicial para que a gente consiga orientar e para que essa família busque outras ferramentas”, explica.
Sobre o ISD
O Instituto Santos Dumont é uma Organização Social vinculada ao Ministério da Educação (MEC) e engloba o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra e o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, ambos em Macaíba. A missão do ISD é promover educação para a vida, formando cidadãos por meio de ações integradas de ensino, pesquisa e extensão, além de contribuir para a transformação mais justa e humana da realidade social brasileira.