No ano de 2014, aos 19 anos, Leonardo Lima acabava de deixar sua mãe no trabalho, na cidade de Macaíba (RN), quando foi abordado por assaltantes. Ao acelerar a moto para tentar fugir do assalto, sofreu uma série de tiros disparados pelos assaltantes, que resultaram em uma lesão completa na medula espinal. A lesão medular completa é diagnosticada quando não existe qualquer movimento voluntário abaixo do nível do trauma. Parte do sistema nervoso central, a medula é responsável por conduzir sinais relacionados à sensibilidade do cérebro para o restante do corpo. Até a década de 1990, acreditava-se que, em casos como os de Leonardo, ao sofrer um traumatismo grave, a comunicação entre a medula e o cérebro estaria totalmente interrompida. Estudos com cadáveres, no entanto, revelaram que não é bem assim.
Em 1998, o médico e um dos diretores fundadores do Instituto de Neurociências da Universidade do Oeste da Austrália, Byron Kakulas, apresentou dados que revelavam a preservação de até 27% da chamada “área branca” da medula espinal, onde se concentram os axônios, a parte do neurônio responsável pela propagação dos sinais para o cérebro e de volta para a medula. Isso significa que, diferente do que se pensava, a comunicação entre a área abaixo da lesão e o cérebro não estava completamente interrompida.
Com o avanço das tecnologias, a percepção de que a lesão medular completa poderia não ser tão completa assim ganhou espaço no mundo científico, principalmente com a consolidação dos estudos sobre neuroplasticidade – a capacidade de nossos neurônios de se adaptarem tanto anatomicamente como funcionalmente diante de determinadas situações.
Integrante da clínica de reabilitação física do Instituto Santos Dumont (ISD), a preceptora multiprofissional fisioterapeuta Camila Simão uniu-se aqueles que buscavam estudar como essas conexões remanescentes poderiam influenciar no processo de reabilitação – e quais ferramentas poderiam ser utilizadas para visualizar a existência dessas conexões. Durante sua pesquisa de Doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Camila investigou a utilização da eletromiografia como ferramenta para identificar a preservação dessas vias remanescentes em pacientes diagnosticados com lesão medular completa e crônica.
A pesquisa foi publicada também em formato de artigo no European Journal of Physical Rehabilitation Medicine (Revista Europeia de Medicina de Reabilitação Física, em tradução livre), no qual a fisioterapeuta apresenta o estudo feito com o paciente Leonardo Lima, no qual a técnica da eletromiografia foi capaz de identificar conexões remanescentes na medula espinal.
A eletromiografia
A eletromiografia é um tipo de exame neurofisiológico, no qual pequenos sensores (eletrodos de superfície) são colocados sobre os músculos para medir a atividade elétrica da contração muscular. Isso é possível porque as contrações e movimentos que fazemos em nosso corpo geram esse tipo de corrente, que pode ser medida pelo equipamento. A técnica foi utilizada pela primeira vez na década de 1970 e, desde então, seus usos evoluíram e o exame passou a ter uma série de aplicações.
Diferente de outras técnicas que podem ser utilizadas para medir a atividade muscular, ela é não-invasiva e com um custo muito mais baixo do que outros equipamentos. Foi por isso que Camila Simão resolveu lançar mão da técnica para tentar trazê-la até a clínica de reabilitação. “Já existem outras formas eficazes de fazer essa medição, mas elas são caras, complexas ou provocam desconfortos para os pacientes. Com a eletromiografia, nós pudemos fazer uma análise com um custo muito reduzido, de forma que essa prática pode ser adotada não apenas para pesquisas científicas, mas na própria clínica”, detalha Simão.
Foi assim que Leonardo Lima pôde, pela primeira vez desde que sofreu a lesão medular, visualizar a atividade dos seus músculos. Com os eletrodos de superfície instalados, ele foi colocado de pé sobre uma plataforma que lhe dava sustentação. Ao seu lado, Camila Simão emitia comandos para que ele imaginasse o movimento da forma mais forte possível. Fora da tela, a força aplicada por Leonardo parecia não provocar efeitos na movimentação de suas pernas. No computador que registrava os movimentos, no entanto, a realidade era outra: a cada pensamento de contração, era possível visualizar um efeito no monitor, onde o sinal subia com o esforço do movimento.
Para os pesquisadores, os achados direcionam, como disse Camila, “um novo paradigma no processo de avaliação e reabilitação desta população” diante da possibilidade de neuroplasticidade. Esse, no entanto, não foi o único efeito prático identificado pela pesquisa. A visualização dos movimentos pela eletromiografia por Leonardo, por exemplo, deu-lhe ainda mais vontade de se dedicar à reabilitação. “Quando eu vi aquele sinal subindo, minha vontade era tentar mais, mais e mais. É outro tipo de visualização, outro tipo de entendimento que a gente passa a ter do nosso corpo e da vida dentro dele”, declarou.
Texto: Mariana Ceci / Ascom – ISD
Foto: Mariana Ceci / Ascom – ISD
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